Trabalhadores
brasileiros têm pouca escolaridade e se qualificam em cursos privados
10/11/2011
Dados
divulgados pelo MTE e Dieese mostram que a formação universitária está longe do
universo dos trabalhadores brasileiros, que buscam mais cursos de qualificação
quando estão desempregados.
É
apenas na região sudeste que a porcentagem de trabalhadores com ensino médio
completo é maior do que a daqueles que têm apenas o fundamental completo. Em
todas as outras regiões do país, mais de 30% da população economicamente ativa
(PEA) sequer concluiu o ensino fundamental. Os dados são do Anuário do Sistema
Público de Emprego, Trabalho e Renda elaborado pelo Ministério do Trabalho e
Emprego e pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos
Socioeconômicos (Dieese). O estudo aponta ainda que a maioria das instituições
responsáveis por qualificar os trabalhadores são particulares
e que mais de 80% dos cursos são de qualificação profissional, apenas 17,9% de
ensino técnico de nível médio e 0,5% de graduação tecnológica, ou seja, a
formação dos trabalhadores é feita majoritariamente nos cursos chamados de
formação inicial e continuada, cursados, em geral, em pouco tempo.
Outros
indicadores mostram ainda o tamanho do desafio de garantir aumento de
escolaridade e formação profissional para os trabalhadores, já que a maior
parte deles tem uma extensa jornada de trabalho. As pessoas que trabalham mais
tempo - mais de 45 horas diárias - são aquelas que não têm o ensino médio,
apenas concluíram o fundamental. Em 2009, 33,8% dos trabalhadores com ensino
fundamental completo estavam nesta situação em todo o país. A região onde há
mais pessoas com esta escolaridade trabalhando 45 horas semanais ou mais, isto
é, no mínimo 9 horas por dia, é o sudeste, onde 34,5% dos trabalhadores com
fundamental incompleto também trabalham mais de 45 horas. O quadro nacional
revela quanto tempo o brasileiro passa trabalhando:
41,4% tem jornada de 37 a 44 horas, 29,3% de 45 horas ou mais, apenas 15,4%
trabalham de 21 a 36 horas e 13,9% até 20 horas semanais. Será que sobra tempo
para a formação profissional e ainda para aumentar a escolaridade?
"É
uma carga horária de trabalho que dificilmente possibilitará uma formação para
este trabalhador. Ele tem alguma possibilidade de buscar escolarização no tempo
noturno", observa a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Marise
Ramos. Ela comenta que muitos trabalhadores procuram aumentar a escolaridade no
momento em que estão desempregados, mas que, ao conseguirem algum trabalho,
acabam abandonando novamente a escola. Segundo ela, um problema do Programa de
Educação de Jovens e Adultos (Peja), que é voltado à escolarização de pessoas
que não concluíram os estudos no tempo convencional, é o pequeno número de
alunos matriculados e os altos índices de evasão. O público potencial do Peja é justamente composto por estes trabalhadores
brasileiros com baixa escolaridade. A professora explica que eles acabam tendo
que escolher entre trabalhar e estudar, e, obviamente, devido às necessidades
básicas da vida, o emprego é a prioridade. De fato, os dados do anuário mostram
que os trabalhadores desocupados foram os que mais buscaram algum curso de
qualificação em 2007.
Há
mais de dez anos tramita no Congresso Nacional uma proposta de redução da
jornada de trabalho para 40 horas semanais. A Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 231/1995 modifica a jornada de 44 horas regulamentada pela CLT sem
reduzir os salários. Um relatório favorável à PEC já foi aprovado na comissão
especial de parlamentares criada para deliberar sobre o tema, mas a proposta
está parada na Câmara e ainda precisa ser votada no plenário das duas casas
legislativas. Em comunicado à imprensa, o Dieese argumentou que a medida gerará
mais empregos e não causará impactos na competitividade das empresas
brasileiras. "Além de extenso e flexível, o tempo de trabalho no Brasil
vem sendo intensificado em função das diversas inovações
técnico-organizacionais implementadas pelas empresas
como, por exemplo, a polivalência, a concorrência
entre os grupos de trabalho, as metas de produção e a redução das pausas. Num
contexto de crescente demanda do setor produtivo para que os trabalhadores se
qualifiquem, a redução da jornada de trabalho, sem redução dos salários, em
muito contribui para este desafio na medida em que liberaria mais horas para
que o trabalhador tivesse melhores condições de se qualificar", diz o
Dieese no comunicado, divulgado em junho deste ano.
Uma
das estratégias do governo federal para ampliar as oportunidades de
qualificação profissional no Brasil é o Programa Nacional de Acesso ao Ensino
Técnico e Emprego (Pronatec) que, como destaca Marise, vincula o seguro desemprego à frequência
do trabalhador a algum curso de qualificação. "Mas e essas pessoas que
trabalham 44 horas e têm baixa escolaridade, que política pública resolverá
este problema?", questiona.
Escolaridade, idade e
renda
Os
dados do Anuário mostram também que, apesar da grande defasagem escolar da
maior parte da população economicamente ativa brasileira, as pessoas mais
jovens têm concluído pelo menos o ensino médio. Na faixa etária de 18 a 29
anos, 39,9% das pessoas têm ensino médio completo, na faixa etária de 30 a 39
anos, esta porcentagem cai para 30,1%. O índice é decrescente à medida que a
idade aumenta - de 40 a 49 anos, apenas 25% têm o ensino médio completo, na
faixa etária de 50 anos ou mais, este indicador despenca para apenas 14,4%,
predominando nesta faixa o fundamental incompleto (44%). Marise
chama a atenção para o fato de que esta população de 18 a 29 anos é a geração
nascida após a Constituição de 1988, que determina a obrigatoriedade do ensino
fundamental. Essa obrigatoriedade, segundo a professora, acaba refletindo
também na frequência ao ensino médio. Ela lembra que
a Emenda Constitucional 59 , aprovada em 2009, amplia
esta obrigatoriedade para até os 17 anos, mas não afirma que o ensino médio é
obrigatório. Ou seja, se um jovem de 17 anos, por razões diversas, ainda está
cursando o ensino fundamental, a obrigação do Estado de garantir educação
gratuita termina quando ele completa os 17 anos. "Com isso, estamos
privilegiando simplesmente a escolaridade e não a conclusão do ensino médio. A
emenda não é ruim, mas é insuficiente", afirma.
As
tabelas do anuário mostram também que, entre as pessoas que recebem até um
salário mínimo, a maior parte tem apenas o fundamental incompleto (46,7%). Já
entre aqueles que recebem mais de um salário, 33% têm ensino médio completo. Os
trabalhadores com ensino superior representam 16,9% dos que recebem mais de um
salário.
Marise alerta para o
baixo percentual das pessoas com ensino superior que recebem acima de um
salário, o que demonstra, de acordo com ela, que a escolaridade não garante
níveis salariais mais altos, como geralmente se divulga. A professora comenta
que a escolaridade é, muitas vezes, um critério exclusivamente de seleção e que
não está necessariamente relacionado com as funções desempenhadas pelos
trabalhadores.
Como e onde os
trabalhadores se qualificam
Segundo
o Anuário, quase 22% da população economicamente ativa frequentou
em algum momento cursos de qualificação em 2007. Entre estes, havia uma porcentagem
maior de pessoas desocupadas do que de ocupadas, o que confirma a explicação de
Marise, de que as pessoas procuram mais se formar
quando estão desempregadas, na expectativa de conseguirem trabalho. Mais da
metade dos que frequentaram cursos o fizeram em
instituições de ensino particular (53%), enquanto 24,2% cursaram no Sistema S e
17,4% em instituições de ensino público.
A
também professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz,
Márcia Lopes, ressalta a importância de se avaliarem os cursos de qualificação
não apenas pela carga horária e tipo de formação. "O que define o que é um
trabalhador qualificado depende de um jogo de forças dentro da sociedade. Se
ele precisará ser um trabalhador técnico ou apenas saber ler ou escrever é
definido por este jogo de forças", pontua. A professora exemplifica com o
caso dos agentes comunitários de saúde (ACS) que, em alguns estados, precisam
ter formação técnica (e, portanto, ensino médio completo). "O que
determina isso é a força do movimento dos ACS, a
importância que este profissional tomou dentro de um programa que se tornou uma
estratégia prioritária no Ministério da Saúde, o reconhecimento social que ele
alcançou", lista.
Márcia faz parte da coordenação de uma pesquisa sobre os
processos de qualificação de trabalhadores técnicos em saúde, que está sendo
desenvolvida pelo Observatório dos Técnicos em Saúde, sediado na EPSJV/Fiocruz. Para a professora, o reconhecimento social dos
trabalhos desempenhados determina o tipo de formação exigida. "Quando você
olha para um ACS e diz que ele só precisa de nível fundamental e um curso de
qualificação, você está dizendo que o trabalho dele é simples, que não precisa
de um grande conhecimento. É uma forma de não dar um reconhecimento social.
Quando você diz que ele precisa de nível médio, amplia isso, inclusive em
termos salariais. É claro que isso tem a ver com conhecimento técnico, mas
também com reconhecimento social e com o valor dos conhecimentos", diz. Marise completa, seguindo o mesmo exemplo: "Se
olharmos as funções que os ACS precisarão desempenhar,
isso exigiria que eles fossem cientistas sociais".
De
acordo com os dados do Anuário, as pessoas sem instrução frequentaram
mais os cursos no setor agrícola, de construção e serviços domésticos. A
parcela da população com ensino fundamental incompleto cursos nos setores agrícola; de serviços domésticos; construção,
alojamento e alimentação; além de transporte, armazenagem e comunicação. Já
aqueles com fundamental completo buscaram cursos nos setores de construção,
serviços domésticos; alojamento e alimentação; indústria; e "outros
serviços coletivos, sociais e pessoais". Os trabalhadores com ensino médio
completo frequentaram mais cursos nas áreas de
comércio e reparação; seguidos por administração pública e indústria.
A
porcentagem de trabalhadores em cursos nas áreas de educação, saúde e serviços
sociais começa a crescer à medida que se aumenta a escolaridade. A área é a
mais procurada entre aqueles com superior incompleto e completo. No ranking
geral, levando-se em conta todos os trabalhadores que se matricularam em cursos
de qualificação independentemente da escolaridade, as áreas mais procuradas
foram de informática, indústria e manutenção, comércio e gestão, saúde e bem
estar social, estética e imagem social e construção civil, em ordem
decrescente. Marise Ramos identifica, de forma
crítica, uma divisão do trabalho na qual determinadas classes
sociais devem ocupar sempre as mesmas funções. "As profissões têm
cara e até cor", diz.
Márcia
completa que é necessário valorizar todos os tipos de trabalhadores, garantindo
condições de formação. "Dessa forma, se quebra essa característica da
nossa sociedade que é diferenciar o trabalho manual do trabalho intelectual,
essa lógica de que um grupo que só faz trabalho manual não precisa pensar sobre
o seu trabalho, já que pensar é função de outro grupo", aponta.
Raquel Júnia é jornalista
* Matéria publicada
originalmente para a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
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