Revista Veja, Edição 1813, 29/07/03
Os pobres nos cursos técnicos
"Comemoremos a chegada da classe operária às escolas técnicas. Mas
nos preocupemos com as políticas elitistas disfarçadas que, ao prometer uma
miragem, acabam não oferecendo nada"
Claudio de Moura Castro
Um levantamento da Fundação Paula Souza, responsável por mais de 100 escolas técnicas, mostra que os alunos dos cursos técnicos do Estado de São Paulo são muito mais pobres hoje que em 1995. Desastre? Será essa a causa da Portaria nº 1732 do MEC (4 de julho de 2003), interrompendo inexplicavelmente as autorizações para abertura de cursos de tecnólogo? Temos um vício de perspectiva. Sempre pensamos que quanto mais pobre pior.
Mas em educação costuma ser o oposto. Quanto mais pobres houver, mais bem servidas serão as metas de eqüidade.
Tradicionalmente, o ensino técnico sofria a distorção do tipo "se correr o bicho pega, se ficar o bicho come". Quanto mais esforço havia para melhorar as escolas, menos eficaz ela se tornava em preparar profissionais e mais elitizada era a sua clientela. Isso porque, quanto melhor é o ensino, mais existem pimpolhos das elites buscando uma educação gratuita e de qualidade para prepará-los para os vestibulares mais competitivos. Uma pesquisa mostrou que havia uma escola técnica federal dentre as dez que melhor preparavam os alunos para os cursos mais competitivos de São Paulo, incluindo o de direito da USP. De fato, quanto melhor o curso, menos profissionalizava, pela presença maciça dos vestibulandos de classe alta, competindo ferozmente pelas poucas vagas. Com a reforma do ensino técnico que separou a parte profissional da acadêmica, só vai hoje para o curso técnico quem está realmente interessado em uma profissão. O desinteresse das elites pelo lado profissional abre vagas para os mais pobres, que antes não conseguiam competir (em "vestibulinhos" com mais de dez candidatos por vaga).
Dados recentes da Paula Souza documentam de forma indisputável a troca de perfil dos alunos. Aqueles com renda familiar de até cinco salários mínimos passaram de 32% para 57%. Ou seja, praticamente dobrou a proporção de alunos de origem muito modesta, legitimamente interessados nos cursos profissionais oferecidos. Eis um feito a ser comemorado. Acendamos foguetes e rojões para sua entrada no ensino técnico, ainda que tardia. Já os de onze a vinte salários caíram de 21% para 8% e a faixa de 21 a trinta salários passou de 5% para 1%. Mas, infelizmente, nem todos comemoram. Ainda há escolas que preferem os alunos de origem social mais alta, por serem mais fáceis de lidar. Para outros, ter clientelas mais modestas é perda de status. Houve até manobras para manter o elitismo de alguns cursos técnicos federais. Os Community Colleges americanos, que oferecem cursos equivalentes ao nosso técnico e tecnólogo, têm orgulho de lidar com clientelas mais difíceis e com menos base acadêmica. Seu desafio é oferecer um ensino de qualidade ao grupo mais pobre, dentre os que cursam o nível superior. Há quem diga que a competitividade americana tem muito a ver com seu belo trabalho de profissionalizar alunos com base acadêmica fraca. Também as nossas escolas técnicas estão descobrindo serem os alunos do novo técnico mais motivados, dando maior satisfação aos professores.
Uma diretora de escola de Porto Alegre contou que logo após a separação os professores mais qualificados desdenhavam os alunos dos cursos profissionais. Mas acabaram preferindo ensinar a eles, pois eram mais maduros e mais sérios. Infelizmente, o ensino técnico é vítima de intermináveis diatribes ideológicas e doutrinárias, em que se discutem autores defuntos, alguns mortos antes da implantação da formação profissional nos países industrializados. Não obstante, é bom lembrar que o mundo real é o juiz supremo.
Igualdade de oportunidades e maior democratização do ensino não se decidem por pregações e papers acadêmicos, mas indo às escolas e contando quantos pobres havia antes e quantos há agora. Como fez Juruna, representante da Força Sindical no Fórum Nacional (do ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso), comemoremos a chegada da classe operária às escolas técnicas. Mas nos preocupemos com as políticas elitistas disfarçadas que, ao prometer uma miragem, acabam não oferecendo nada.