Estudantes das escolas que tiveram piores resultados no Enem enfrentam desafios
11/10/2011

Eles são os melhores das piores escolas e lutam contra falta de laboratórios, professores e até pia e descarga nos banheiros
Glória Tupinambás Quem faz a escola é o aluno. O velho ditado é repetido como um mantra - muitas vezes quase uma oração - por jovens como Jeniffer Rodrigues dos Santos, Samuel Costa Linhares e Daniel Júnior Rampe. Matriculados em instituições de Belo Horizonte que ocupam a posição de lanterna no ranking do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), eles despontam como verdadeiros campeões na adversidade. A cada dia, “matam um leão” que aparece sob a forma da falta constante de professores, precariedade de materiais de estudo, inexistência de laboratórios e carência de infraestrutura básica. Não bastassem tantos desafios, todos enfrentam ainda o pesado fardo da dupla jornada de escola e trabalho. Os obstáculos são suficientes para comprometer o desempenho dos colégios na avaliação do Ministério da Educação (MEC), mas não grandes o bastante para impedir a construção de um futuro de sonhos e oportunidades.

O Estado de Minas percorreu instituições da capital com os piores aproveitamentos no Enem 2010, cujo resultado foi divulgado no último mês, e se deparou com histórias de superação e esforço pessoal. Na Escola Estadual Engenheiro Prado Lopes, no Bairro Alto Vera Cruz, Região Leste de BH, o exemplo de sucesso responde pelo nome de Jeniffer. Com 18 anos, a garota vaidosa, de cabelo arrumado, maquiagem no rosto e um discreto piercing no nariz, fala com orgulho do boletim que nunca teve uma nota vermelha e, atualmente, ostenta dois 10, em matemática e física. Aluna dedicada e aplaudida por professores e diretores da unidade de ensino, ela conta que sempre arruma uma brecha na agenda de ajudante de cabeleireira ou um tempinho na pesada, e precoce, rotina de dona de casa para se entregar à sua paixão: livros e cadernos.

“Trabalho num salão até tarde e, quando chego em casa, tenho que dar conta de roupa para lavar, faxina para fazer e do jantar do meu marido. O cansaço é uma pedra no meu sapato, mas faço de tudo para não faltar à aula. E se tenho um minuto vago no meio do dia aproveito para estudar um pouquinho. Faço esse esforço porque sei que a escola é essencial para quem sonha vencer na vida”, diz Jeniffer, cheia de planos de entrar na universidade e se formar em pedagogia. “Vou ser uma professora exemplar, para trabalhar com crianças e tentar transformá-las em boas pessoas.”

Posição - Envolvida com os preparativos para o Enem, que será aplicado nos próximos dias 22 e 23, Jeniffer carrega nas costas a missão de ajudar a escola Engenheiro Prado Lopes a melhorar a posição no ranking do exame. Na última prova, a instituição obteve nota geral de 491,81, numa escala de zero a mil, e ficou entre as 10 com o pior desempenho no Enem na capital. O resultado atingiu em cheio a autoestima dos alunos, que já sofrem diariamente com a falta de professores - pelo menos um profissional se ausenta a cada dia, segundo a direção - e com problemas de infraestrutura, como a inexistência de pia e descarga nos banheiros. “As deficiências mais graves foram resolvidas há cerca de um mês, em reforma feita num mutirão na escola. Mas ainda luto contra a falta de professores, que perdem dias de serviço por causa de doenças, estresse e violência. Como não tenho profissionais na reserva para suprir as pequenas licenças trabalhistas, os alunos acabam sendo prejudicados. Com tudo isso, muitos não se sentem capazes de encarar o Enem e os vestibulares”, explica a diretora da escola, Sibele Ávila. Prova disso é que da turma de 10 alunos do 3º ano do ensino médio Jeniffer é a única inscrita na prova deste ano. Na última avaliação, a instituição teve apenas 27,2% dos estudantes no exame nacional.

Jornada dupla para realizar os sonhos - O sol ainda nem pensa em raiar quando, às 4h30, Daniel Júnior Rampe, de 18 anos, é arrancado da cama pelo despertador. Pela frente, o morador do Bairro Dom Bosco, na Região Noroeste de Belo Horizonte, tem um dia inteiro de trabalho como cobrador e vendedor na Ceasa Minas. E quando a noite chega, nada de descanso. É hora de arrumar a mochila e seguir para a Escola Estadual Professor Clóvis Salgado, no Conjunto Califórnia, na mesma região, onde a jornada só termina às 22h25. Com uma rotina tão atribulada, é fácil pensar que não sobra tempo para Daniel se dedicar com afinco aos estudos. Mas o apelido de “aluno nota 10”, dado por professores e diretores da instituição, prova o contrário e deixa o jovem cheio de orgulho e disposição para vencer desafios. O primeiro deles é entrar numa universidade pública e se formar em direito. O diploma a ser conquistado será inédito na família de três irmãos e dezenas de primos. O segundo é ajudar a escola a se livrar do título de pior instituição da capital no ranking do Enem. Com nota geral de 461,38 pontos na prova, a Clóvis Salgado está abaixo da média nacional (511 pontos) e mais de 280 pontos atrás da primeira colocada de Minas Gerais. “Não admito perder médias e tenho como meta a nota 90. Minha mãe me ensinou que meu futuro são os estudos e não vou colher nada na vida se eu mesmo não plantar. Por isso, não tenho preguiça e tento fazer minha parte”, diz Daniel, que ajuda os pais em casa desde criança e trabalha fora há dois anos.

Autoestima - No boletim de Samuel Costa Linhares, de 19, predomina a nota 7. O desempenho é considerado “razoável” pelo jovem, que teme não estar preparado para fazer vestibular e enfrentar a disputa por uma vaga na faculdade. A escola em que ele estuda, Estadual Engenheiro Francisco Bicalho, no Barreiro, teve nota 495,31 no último Enem e colocou a instituição entre as de menor aproveitamento. Samuel trabalha como atendente de telemarketing com uma única meta: juntar dinheiro para pagar um curso preparatório para o Enem no ano que vem. O emprego obrigou o jovem a abandonar, pelo menos por enquanto, a música, sua grande paixão. “Eu era percussionista da Orquestra de Sopros da Fundação de Educação Artística, mas, infelizmente, não pude continuar como músico.” Questionadas pela reportagem, as direçóes das duas escolas argumentam que falta interesse dos alunos pela prova, dedicação de alguns professores e estímulo da família. “Nossa nota no exame não é boa e a participação é muito baixa porque os alunos não acreditam no próprio potencial. A faculdade também é um sonho distante para eles, que não têm condição de pagar altas mensalidades nem se sentem capazes de disputar vaga nas federais. Também há casos daqueles mais acomodados que pensam que o ensino médio é suficiente para conquistar um emprego”, afirma a diretora da Francisco Bicalho, Luci Mary Lourenço da Silva.

Estado de Minas