Enem:
matriculados, presos dependem da Justiça para estudar
24 de outubro de 2012
Pouco
mais de um mês depois da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem),
em 3 e 4 de novembro deste ano, a população carcerária
do País também terá a oportunidade de fazer as provas e pleitear uma vaga na
universidade. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira (Inep) divulgou em setembro edital que confirma para 4 e 5 de dezembro a aplicação do Enem nas unidades
prisionais que firmarem acordo com o órgão. Um bom desempenho na prova,
contudo, não assegura o ingresso no ensino superior. Mesmo matriculados, esses
alunos dependem de autorização especial da justiça para poder frequentar as
aulas - especialmente os detentos que cumprem pena em regime fechado.
Além
da permissão, há a questão logística da operação: conforme a sentença do juiz, pode ser exigido monitoramento eletrônico (como
tornozeleiras) ou até mesmo escolta armada. Por isso, ainda que tenha permissão
para frequentar a universidade, o aluno pode esbarrar na falta de estrutura do
Estado.
É
o caso de Eder da Silva Torres, que foi aprovado no Enem e começaria o curso de
Direito na Universidade de Caxias do Sul (UCS), no Rio Grande do Sul, em agosto
de 2011. Desde o final de 2008, Torres cumpre pena de 23 anos e três meses na
Penitenciária Industrial de Caxias do Sul por homicídio e tráfico. Mesmo
matriculado e com liberação para participar das aulas devido ao bom
comportamento, ele não conseguiu iniciar os estudos no ensino superior.
Na
época, a Superintendência dos Serviços Penitenciários do Estado (Susepe) alegou não ter efetivo suficiente
para realizar a escolta do detento como determinado pelo judiciário. Mais de um
ano depois, Torres segue em regime fechado sem ter
cursado nenhuma das disciplinas. Segundo a UCS, a vaga para a qual ele havia
sido aprovado foi perdida. Para ingressar outra vez na universidade, ele
dependeria de uma nova prova.
A
professora de Direito Penal da Universidade de Brasília (UnB) Beatriz Vargas
afirma que a escolta é uma atribuição policial. Embora, na teoria, a decisão
judicial deva ser acatada e viabilizada, com a efetivação do benefício
concedido, na prática os órgãos de segurança podem apresentar justificativas
para o não cumprimento da medida. Para Beatriz, é possível que posições
ideológicas divergentes dificultem a aceitação dessa decisão, mas a falta de
estrutura e de efetivo é o mais comum. "As dificuldades são de ordem
estrutural. Na maior parte das vezes, esses benefícios concedidos aos presos
não são efetivados devido à deficiência do sistema", considera.
Em
2011, foram 14.118 detentos inscritos no Enem, segundo dados do Inep. Em 2010,
o instituto também recebeu mais de 14 mil inscrições, e a prova foi realizada por mais de 10 mil candidatos - 70% de
presença.
Decisão inédita no CE
No
Ceará, a juíza Luciana Teixeira de Souza, da 2ª Vara de Execuções Penais do
Tribunal de Justiça (TJ) do Estado concedeu, em fevereiro deste ano,
autorização para que Cynthia Corvello, detenta do Instituto Penal Feminino
Desembargadora Auri Moura Costa, localizado em Aquiraz, região metropolitana de
Fortaleza, frequentasse as aulas do curso de história na Universidade Federal
do Ceará (UFC). Foi a primeira vez que uma decisão desse tipo foi tomada no
Estado. Em regime fechado desde 1993, quando foi presa por homicídio
qualificado e condenada a 25 anos e 4 meses de
reclusão, Cynthia prestou o Enem em 2011 e obteve a vaga por meio do Sistema de
Seleção Unificada (Sisu).
A
decisão, segundo a juíza, foi baseada na Lei de Execução Penal, que prevê a
possibilidade de trabalho externo em obras públicas para presos do regime
fechado. "Há jurisprudência em que o estudo é equiparado ao trabalho para
redução de pena, então foi uma interpretação analógica", explica Luciana.
A individualização da pena, prevista na Constituição Federal, também foi levada
em conta.
No
caso de Cynthia, além de bom comportamento, ela deve ter direito ao semiaberto
em 2013. "Era uma situação completamente especial. Não seria justo ela ter
todos esses elementos e não poder estudar em universidade pública",
explica Luciana. Mesmo assim, a juíza reconhece que é uma decisão de muita
responsabilidade. "Afeta a sociedade. Tem que examinar com muita cautela
para que não gere prejuízo social", ressalta.
Autorização
A
professora de Direito Penal da Universidade de Brasília (UnB) Beatriz Vargas
reconhece que o texto da lei não prevê expressamente a concessão desse tipo de
autorização. "Não existe a possibilidade de o condenado sair para
acompanhar cursos. Essa atividade externa só poderia ser feita por presos do
regime semiaberto e aberto", entende. A analogia feita pela juíza, no
entanto, é plausível, na visão da professora, observando a conduta da detenta.
"Apesar de os dispositivos específicos do regime fechado não fazerem essa
exceção, a compatibilização com o espírito da lei permite conceder ao recluso condições para ele se reinserir na vida
social", avalia Beatriz.
Luciana
informa que tanto a diretora da unidade prisional quanto o promotor foram
favoráveis à permissão, uma vez que a detenta nunca havia tentado fugir ou se
envolvido em outros crimes, além de ter contribuído com a idealização de uma
biblioteca na unidade. "Depois que a gente concedeu a decisão, a
Secretaria de Justiça assumiu o compromisso de fazer com que não houvesse
nenhum problema. Ao mesmo tempo, mostrei o compromisso que ela (Cynthia) estava
assumindo com a Justiça", afirma.
Para
concretizar a autorização, a juíza dispôs de uma tornozeleira eletrônica e, nos
primeiros dez dias, Cynthia foi à universidade acompanhada por uma agente
feminina sem farda, a fim de delimitar a área por onde ela passaria e prever o
tempo que ela precisaria para cumprir o trajeto e assistir às aulas. Hoje,
cursando o segundo semestre, a detenta vai sozinha para a universidade,
monitorada eletronicamente e com o único fim de estudar. "Ela não pode
receber visita de familiares. Para ela, a universidade é uma extensão da
unidade prisional", explica a juíza. Mensalmente, a instituição deve
enviar relatórios sobre o desempenho da aluna e sua participação em sala de
aula. Mas Luciana garante que os pareceres têm sido positivos e não há
resistência por parte dos demais estudantes.
A
juíza, entretanto, ressalta a questão da individualização da pena para que
fosse concedida a autorização a Cynthia. "Qualquer benefício previsto na
lei depende de análise objetiva e subjetiva", explica. Além disso, mesmo
detentos que estejam cumprindo regime semiaberto dependem de autorização para
esse tipo de atividade. "Se me perguntarem se todos os presos que passarem
em universidade pública vão poder cursar, eu vou dizer que não. Tem que
analisar caso a caso", diz.
Beatriz
vê na decisão uma chance para incitar o debate sobre o tema no País, uma vez
que se trata de uma situação rara, e muitos juízes, na sua
opinião, tendem a promover uma interpretação mais literal da lei.
"Quando aparece uma decisão que rompe, é interessante que ela seja
viabilizada. A lei de atuação pode ser melhorada. O Estado tem que criar
condições para que isso seja um direito efetivo", analisa.
A
professora afirma que a ausência de uma regra legal expressa sobre determinado
tema não inviabiliza a análise de um caso desse tipo, pois a demanda pode ser
resolvida por analogia a fim de preencher uma lacuna na lei. "Os
movimentos de modificação da legislação geral começam assim. Muitas vezes ela
muda o seu texto em função de uma modificação na prática. Às vezes é a própria
ousadia do intérprete da lei que pode convencer da importância da
mudança", justifica.
Redução na reincidência
A
alteração na Lei de Execução Penal (Lei nº. 7.210/84) instituída em 2011
acrescentou o estudo como meio de obter remição de pena - antes, somente o
trabalho poderia validar a diminuição do tempo de condenação. A equivalência
prevista na legislação é de um dia a menos na prisão a cada 12 horas de estudo
ou a cada 3 dias de trabalho.
Um
estudo feito pelo professor Elionaldo Fernandes Julião, do programa de
pós-graduação em educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), acompanhou
mais de 130 mil detentos do Estado do Rio de Janeiro entre 1996 e 2006. O
período abrangeu a implantação de políticas de educação, desde a alfabetização,
nas unidades prisionais do estado, e cerca de 52 mil
participaram de pelo menos alguma atividade. Segundo a pesquisa de Julião,
publicada em livro recentemente, o estudo reduz em 39% as chances de retorno ao
mundo do crime, e o trabalho, em 48%.
Embora
tenham sido observados apenas alunos até o ensino médio, o professor acredita
que o ensino superior também contribuiria para essa redução. A experiência
brasileira em oferecer essa possibilidade à população carcerária, contudo, é
muito incipiente, na visão de Julião. Isso acontece, em parte, porque cerca de
60% de jovens e adultos que estão presos não concluíram nem o ensino fundamental.
"É preciso repensar a política educacional que está sendo implantada no
sistema prisional. Alguns Estados sequer oferecem escola nas prisões",
destaca o professor.
Julião
também opina que o Ministério da Justiça deveria criar uma diretriz nacional
que fixasse parâmetros para o tratamento penitenciário em diversas frentes,
entre elas a educação. "Os presos são cidadãos como qualquer outra pessoa.
Ele perde o direito de ir e vir, mas todos os outros direitos têm que ser
garantidos. Educação é um direito humano e subjetivo", observa.
Fonte: