Folha Dirigida, 21/02/2006 - Rio de Janeiro RJ
Cursos técnicos em real sintonia com o
mercado?
Renato Deccache
Principalmente antes da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a educação profissional era vista ou como estratégia de empresas para melhorar a qualidade do trabalho de seus empregados ou como forma de possibilitar àqueles que não tinham interesse no ensino médio tradicional uma oportunidade de formação para o mercado. Porém, a ampliação do acesso aos ensinos fundamental e médio, que gerou pressão por vagas no ensino superior, e as mudanças recentes no mercado de trabalho têm levado a sociedade a ver de forma diferente o papel dos cursos técnicos.
Não por acaso, têm sido discutidas questões como uma avaliação nacional dos cursos técnicos, mudanças na diretriz de formação profissional e maior adequação com as demandas econômicas regionais, pontos, aliás, que já fazem parte do debate em torno do ensino superior. Mas será que a educação profissional brasileira vem evoluindo de forma a atender as necessidades de melhoria da mão-de-obra do país? Enquanto o poder público acredita que o país melhorou em termos de oferta e qualidade, especialistas defendem que ainda há muito a fazer. Como é o caso do secretário Estadual de Trabalho do Rio de Janeiro e ex-diretor do Cefet-RJ, professor Marco Antonio Lucidi. Ele destacou o crescimento na oferta nos cursos técnicos e superiores de tecnologia, mas chamou a atenção para a falta uma ação forte nos chamados cursos de nível básico.
"Temos que fortalecer a formação inicial e permanente do cidadão, criando vagas em cursos que qualificam de forma rápida para o mundo do trabalho e associando isto a um aumento de escolaridade. Hoje, vemos um baixo nível em termos de qualidade e quantidade da formação inicial, ou seja, de profissionais como o soldador, o caldeireiro, etc", analisou Marco Antonio Lucidi, criticando a queda nos investimentos nesta área. "Temos baixíssimos investimentos para a qualificação profissional. O Ministério do Trabalho está deixando a desejar. Já chegamos a ter, com o Fundo de Amparo ao Trabalhador, mais de R$400 milhões. E, hoje, para o país inteiro, não temos R$120 milhões. Com isso, um país que já qualificou 3,5 milhões de brasileiros no início do século, agora não chega a 170 mil. Isto vai determinar ao país uma importação de mão-de-obra", alertou.
Volta do integrado e novas unidades - Do lado do poder público, as perspectivas são mais otimistas. Ivone Maria Elias Moreyra, da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do MEC (Setec) avalia que o país evoluiu na área de educação profissional. Ela destacou a volta do regime integrado de ensino médio e técnico e a criação de mais 29 unidades de Cefets como sinais de que o país está no caminho correto. "A educação ocupa, hoje, posição estratégica, não só porque forma profissionais de qualidade para o mercado, mas porque é fundamental para o país ter instituições que trabalhem com pesquisa e desenvolvimento tecnológico", destacou Ivone, que é uma das diretoras da Setec.
Mas, até que ponto um país como o Brasil, que possui uma série de desafios na educação básica, deveria investir pesado em educação profissional? A representante do MEC cita os cerca de 13 milhões de brasileiros que já concluíram o ensino médio e os 75 milhões que ainda não têm a educação básica completa como justificativas para ampliar o acesso a uma formação profissional. "São pessoas que terão dificuldades se só tiverem o ensino superior como opção de qualificação para o mercado", comentou.
A professora Terezinha Lameira, presidente da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro, concorda, ressaltando o aumento na oferta de emprego e a melhoria na qualidade de vida que um programa de educação profissional consistente pode trazer. "Qualquer educador deve defender que seus alunos tenham a oportunidade de receber educação básica de qualidade, garantindo uma sólida formação geral que seja o ponto de partida para o desenvolvimento de habilidades específicas exigidas para o bom desempenho profissional. No entanto, não se pode negar que a formação de bons técnicos deve caminhar lado-a-lado com as ações voltadas para o desenvolvimento econômico de uma região", destacou.
Mercado exige melhor qualificação
Outra questão recorrente em relação à educação profissional é a capacidade de o mercado absorver a quantidade de trabalhadores que se formariam, a partir de uma maior oferta de vagas no setor. Para Roberto Boclin, que preside o Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro e é especialista em educação profissional, o mercado carece de profissionais com qualidade. "É isso que tem, de alguma forma, mantido um crescimento na colocação de jovens que concluem os cursos técnicos. O que não significa crescimento de emprego, mas sim um mecanismo de troca entre pessoas semi-qualificadas ou com qualificação deficiente, por profissionais qualificados", destaca. A mesma posição tem o professor Marco Antonio Lucidi. "Hoje, o mercado é seletivo em relação ao ensino médio. E o país vai caminhar, como o mundo já fez, para a certificação de mão-de-obra. Cada vez mais, precisamos de operários qualificados para o desenvolvimento do país", comentou.
Não é só em relação à quantidade de profissionais formados que existe a dúvida sobre a capacidade de absorção do mercado. O professor Roberto Boclin entende que o próprio processo de formação pode afetar a empregabilidade, se tiver foco muito específico. "A formação profissional tem de ser polivalente. Não só por causa das possibilidades de oferta de emprego em áreas afins como também pelo fato de as tecnologias estarem em processo crescente de evolução. Então, o profissional tem de estar preparado para estas transformações." A professora Terezinha Lameira acrescenta que esta formação deve ter como foco o cidadão. "É fundamental que nossos alunos tenham favorecidas a construção de competências que lhes permita não só a formação profissional inicial, mas também que sejam capazes de, ao longo de sua trajetória, pensar a formação profissional numa perspectiva de educação permanente.
Outro ponto que pode comprometer a absorção pelo mercado daqueles que se formam em cursos técnicos é a falta de identificação entre a abertura de vagas e as vocações econômicas regionais. Segundo Celso Niskier, da Câmara de Educação Profissional do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro, a abertura de novas vagas, em geral, não obedece a esta lógica. "Em geral, são criadas vagas nos cursos da moda, que estão em alta no momento. Até porque ainda não há informações necessárias para fazer uma política de incentivo às demandas locais", disse o especialista, que vai propor a criação de um censo da educação profissional para o estado. "Assim, vamos começar a controlar o número de vagas oferecidas e a incentivar a abertura de vagas em cursos de grande demanda social", comentou.
Cresce o número de estudantes matriculados - De acordo com dados preliminares do Censo 2005, do MEC, 707.263 estudantes estavam matriculados em instituições públicas ou particulares de educação profissional no país. Um crescimento de 4,62% em relação ao levantamento de 2004, quando foram registrados cerca de 676 mil estudantes. Dos mais de 700 mil alunos, 411.914 (58,24%) estavam matriculados em escolas privadas. A exemplo do que ocorre no ensino superior, a participação da iniciativa privada é praticamente dominante. Com base em dados do Censo 2004, do total das instituições, 84,21% são particulares. Os números mostram também uma concentração regional destes cursos. Do total, 94,95% estão nas zonas urbanas e, entre as regiões, a Sudeste, mais desenvolvida do ponto de vista econômico, lidera com 65,34%. A representante da Setec reconhece que a maior contribuição para a educação profissional tem vindo do setor privado. Especialmente com relação à modalidade que mais cresce no Brasil, a dos cursos superiores de tecnologia. Ela também ressalta a necessidade de uma presença maior do poder público neste segmento.
"As graduações tradicionais não respondem mais completamente à demanda do mercado. Em 2002, por exemplo, havia 270 cursos superiores de tecnologia. Hoje, são 1.803. E o estado tem de responder a esta necessidade, com ensino público superior e de qualidade", comentou Ivone Moreyra. A pouca diversidade de oferta de cursos, a que se referiu o professor Celso Niskier, também pode ser constatada no Censo. A área de Saúde lidera o ranking, com 32,55% das matrículas. Juntas, as de Indústria, Informática e Gestão chegam a 43,47% da oferta.