Gazeta de Cuiabá, 07/10/2003 - Cuiabá MT

Brasil alfabetizado, Brasil livre

Carlos Abicalil

 

O depoimento de uma professora de uma comunidade indígena de Mato Grosso, compelida a avaliar uma turma de alfabetizandos, nos impulsiona a escrever sobre um tema muito citado nos últimos dias, o analfabetismo. Perguntava essa professora: "Qual é a diferença da noite para o dia?" Uma indiazinha muito franzina respondia, em sua língua, que o dia era quando ao olhar mais de perto enxergava que a outra pessoa era igual. A partir de tal depoimento, é possível concluir que não conseguimos enxergar o analfabeto e a analfabeta porque não conseguimos ver o dia e de perto. É como já disse o Ministro da Educação, Cristovam Buarque, talvez o analfabetismo ainda não tenha sido erradicado até hoje porque ele não pega, não é contagioso. Mas ele nos envergonha, e nós temos o direito de ter orgulho de ser brasileiro.

 

Os temas analfabetismo e educação ocupam, hoje, a centralidade dos assuntos ligados à juventude e me impulsionaram a participar da Comissão Especial de Políticas Públicas para a Juventude, que realizou, em setembro, diversas atividades na Câmara. Impulsionei-me em participar por uma razão que está expressa nas intenções do governo federal e da Câmara, que convoca o debate de políticas "de" juventude, e não "para" a juventude. Somente as políticas "de" juventude são capazes de mobilizar essa categoria de brasileiros para apontar a vontade, o empenho, o compromisso e a decisão de responder presente.

 

A capacidade de ler a vida supera a de ler o texto. Porém, na vida cotidiana, o texto é que institui o direito. Esse é mais um dos graves problemas da sociedade tão fragmentada que vivemos hoje. Nesse mundo da sociedade contemporânea, ler o mundo significa ler muitas coisas: ler os afetos revelados e escondidos, ler a discriminações, ler as relações humanas, ler a política, ler a economia.

 

É possível dizer que uma razão sempre presente no discurso sobre a necessidade de alfabetizar, mais freqüente no ambiente dos doutores seja, exatamente, a razão econômica. Em função até de representar graficamente qual é o resultado de um investimento em alfabetização, por exemplo, para a profilaxia e para o benefício sanitários, para o aumento da produtividade e para o aumento da renda. Nem sempre para a repartição dela, porque sociedades fortemente escolarizadas nem sempre distribuem suas rendas.

 

É por isso que governo e Câmara fazem a convocação desse debate, convocação             que nos impõe a apontar para além das razões econômicas, jurídicas, profiláticas, sanitárias, a razão mais fundamental de chegarmos a uma sociedade civilizada, que não quer só comida, que quer comida, diversão e arte. E ao querer comida, diversão e arte, essa convocação faz com que a juventude seja impulsionadora da história e agente de transformação, principalmente ao trazer para o parlamento um tema como Brasil Alfabetizado, para a brasileira e o brasileiro, hoje excluídos, serem livres.

 

É o fato de nós respondermos a essa convocatória que nos impõe o desafio de, em quatro anos, superar as campanhas e movimentos do passado e introduzir um programa de erradicação do analfabetismo, com tempo, com recurso, com destinação, com mobilização. Nós queremos e vamos ousar, nos três anos e três meses que nos restam ainda. Nos meus tempos de juventude, nós cantávamos o hino de "quem sabe faz a hora, não espera acontecer". Quem sabe faz a hora mesmo que não tenha ainda a caneta na mão. Quem sabe fará a lei, constituirá o direito, ampliará as oportunidades se a caneta contribuir para que isso vire uma política de Estado, uma política de governo no processo de inclusão na cidadania brasileira.

 

Carlos Abicalil é filósofo, sociólogo pós-graduado em História Contemporânea, professor da rede estadual de Mato Grosso e deputado federal pelo PT.