Folha de São Paulo, 27/08/2006 - São Paulo SP

As virtudes do Enem

O Enem tem como ênfase a avaliação do perfil de saída dos egressos do nível médio de ensino. É um exame que tem vários objetivos

Paulo Renato Souza

 

A EDIÇÃO 2006 do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) teve quase 4 milhões de inscritos. É uma das coisas que mais me orgulha haver criado quando ocupei o Ministério da Educação no governo passado. Em 1998, quando o realizamos pela primeira vez, pouco mais de 100 mil jovens prestaram o exame; em 2002, foram 1,5 milhão. Dois fatores contribuíram para o salto inicial: a gratuidade para alunos da escola pública, adotada a partir de 2001, e o aumento do número de universidades públicas que aceitaram colocar o Enem como um dos requisitos para o ingresso no ensino superior. No atual governo, um novo patamar foi alcançado quando o exame passou a ser adotado como um dos critérios de seleção para o acesso ao Prouni, o programa de compra de vagas no sistema privado de ensino superior para alunos carentes. O Enem tem como ênfase a avaliação do perfil de saída dos egressos do nível médio de ensino. Ele tem vários objetivos. Do ponto de vista dos alunos, o principal é proporcionar uma avaliação do desempenho ao término da escolaridade básica segundo uma estrutura de competências associadas aos conteúdos disciplinares que se espera tenham sido incorporadas pelo aluno para fazer frente aos crescentes desafios da vida moderna. Não se trata de um exame de suficiência ou de conteúdo. Para efeito de avaliar a preparação do jovem para viver na sociedade do conhecimento, seria inútil medir só a aprendizagem dos conteúdos escolares, uma vez que eles estão em constante mutação. Adotaram-se aqui conceitos que não são novos na educação, mas que foram aperfeiçoados nas últimas décadas e passaram a ser objetivamente medidos: as habilidades e competências cognitivas desenvolvidas pelos alunos como resultado do processo educativo.

 

Na mesma direção, o Enem permite ao poder público dimensionar e localizar as lacunas que debilitam o processo de formação dos jovens e dificultam sua realização pessoal e sua inserção no processo de produção da sociedade. Olhando da perspectiva do sistema educacional, contudo, o principal objetivo do exame é sinalizar para todas as escolas do ensino médio do país o conteúdo da reforma do ensino médio e as habilidades e as competências que, na visão do ministério, deveriam estar desenvolvidas nos alunos ao final do ensino básico. Esse é um aspecto pouco difundido do exame, mas é uma das suas funções mais importantes e, confesso hoje, minha razão maior para implantá-lo. Eu tinha uma clara lembrança do impacto do vestibular da Unicamp, que tive também a felicidade de criar enquanto reitor da universidade. Naquela ocasião, nós causamos uma mudança importante no ensino médio do Estado ao exigir na primeira fase uma redação que tinha um peso de 50% na nota. Além disso, todas as questões eram dissertativas. A lição que tiramos daquele processo é que se pode mudar a maneira que as escolas ensinam simplesmente definindo uma prova final atraente para a maioria dos alunos e que aponte o caminho para um ensino baseado no raciocínio, e não na memorização.

 

Na última edição do Enem, realizado em 2005, cometeram-se dois grandes equívocos: um na prova, outro na divulgação dos resultados. Na prova, abandonou-se o conceito de avaliação de habilidades e competências básicas, aumentando a avaliação de conteúdos esperados no ensino médio. Aparentemente, esse aspecto será solucionado no exame de 2006, a julgar pelo retorno à equipe técnica de pessoas comprometidas com a concepção original do Enem. Por outro lado, na divulgação dos resultados, cometeu-se um grave erro metodológico ao comparar escolas, e mesmo sistemas de ensino, a partir dos resultados do Enem. Este é um exame de alunos, não de escolas, sendo individual e facultativo. A comparação do desempenho de escolas somente pode ser feita se for universal, ou seja, se todos os alunos prestam determinado exame ou se ele é aplicado a uma amostra representativa da escola. Nenhuma dessas duas situações está presente no Enem e, portanto, não há nenhuma base científica para a comparação entre escolas ou sistemas de ensino. Caiu-se na tentação do sensacionalismo, tão prejudicial para o verdadeiro aprimoramento da educação em nosso país. PAULO RENATO SOUZA , 60, é economista. Foi ministro da Educação (governo Fernando Henrique Cardoso), gerente de Operações do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), reitor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e secretário da Educação do Estado de São Paulo (governo Montoro).