O Povo, 06/05/2006 - Fortaleza CE

Analfabetismo escolar

O Brasil se organizou como nação sem "povo". Este é um traço estrutural que atravessa os 506 últimos anos. O "povo" praticamente inexistiu como "sociedade civil" e como categoria política

André Haguette

 

Como passo a escrever uma vez por mês, devo escolher de forma ainda mais criteriosa meus assuntos. Os temas do dia são geralmente os mais atraentes ou palpitantes, mas talvez não sejam os mais importantes. Os temas relevantes são os que dizem respeito às estruturas de uma sociedade, isto é, os temas que discutem como uma determinada sociedade se organiza, se estrutura, se constrói. No caso do Brasil fica claro que o país se organizou como nação sem "povo". Este é um traço estrutural que atravessa os 506 últimos anos. O "povo" praticamente inexistiu como "sociedade civil" e como categoria política. Econômica e politicamente, a população que não pertencia à elite sempre foi usada como massa de manobra, jamais como parceira e cidadã, como se diz hoje, muitas vezes de boca para fora. Mas como foi possível tal feito?

 

Simples, não lhe dando educação formal, isto é, escolarização e qualificação profissional. Quando houve escolas elas somente eram freqüentadas pela aristocracia dos latifúndios, das fazendas e dos engenhos e pela burguesia rica das cidades importantes; não, porém, pelo povo-massa. Para se ter uma idéia, em 1920 a rede paulista de escolas atingia somente 28% da população escolarizável. Pode-se, então, imaginar a situação nos outros estados da Federação!

 

Felizmente, 86 anos depois, a situação mudou muito: o Brasil chegou a ter na escola uns 97% de suas crianças entre 7 e 14 anos, o que certamente é motivo de satisfação. No Ceará, a situação não é diferente, além de termos feito enormes e rápidos avanços no contingente de adolescentes e jovens que freqüentam o ensino médio. Entre 1991 e 2004 foi de 291,8 mil o número de novas vagas de ensino médio criadas no estado, um crescimento percentual de 274%. Destas, 285,5 mil foram criadas na rede estadual, que totalizou um crescimento de 526,6%.

 

Esses números são realmente fantásticos e parecem indicar que a antiga crueldade de deixar o povo-massa fora do processo de escolarização e, portanto, da "cidadanização" foi abandonada. Seria o caso, sim, se uma nova crueldade ainda mais dolorosa não tivesse sido inventada: o analfabetismo escolar. O saco de maldades dos brasileiros é ilimitado quando se trata de manter o povo massa. Tanto o Sistema Nacional (Saeb) como o Estadual (Spaece) de Avaliação da Educação Básica detectaram que 55% dos alunos da 4 série são praticamente analfabetos. Segundo Cláudio de Moura Castro, em países sérios, é residual seu número ao fim da 1a série.

 

Embora nunca se tenha falado tanto em educação no país, ninguém de fato parece se preocupar ou se sentir responsável com essa tragédia escolar. Como entender que uma criança passe 4 anos numa escola sem aprender a ler? Nós pensamos não ter nada a ver com isso; os políticos pensam não ter nada a ver com isso e os professores pensam não ter nada a ver com isso e quanto menos os pais. Engano. Todos somos responsáveis e temos que criar instrumentos de acompanhamento e cobrança da qualidade da aprendizagem dentro da sala de aula.