> Folha Dirigida, 15/03/2007 - Rio de Janeiro RJ

A falência do ensino médio

Renato Deccache 

 

Nas duas principais avaliações do Ministério da Educação divulgadas este ano, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), os estudantes do ensino médio tiveram desempenho muito abaixo do desejável. O quadro não surpreende o professor Roberto Boclin, presidente do Conselho Estadual de Educação e uma referência em termos de Educação Profissional no Estado. Segundo ele, os resultados mostram que a etapa final da educação básica não tem finalidade. "Antigamente, o ensino médio era preparatório para o ensino superior. Mas com o crescimento  na oferta de vagas nas universidades e faculdades, o vestibular deixou de ser uma questão essencial. Há mais vagas do que candidatos, se considerarmos o sistema como um todo", frisou Roberto Boclin, que foi diretor regional do Senai-RJ. O professor é um dos autores de um estudo financiado pelo Instituto Unibanco sobre o ensino médio no Estado do Rio de Janeiro, que já foi entregue ao governador Sérgio Cabral e ao secretário Estadual de Educação, Nelson Maculan. Segundo ele, os resultados são preocupantes. Uma das conclusões é de que, se o quadro continuar  como está, em 2010 a oferta de vagas será 26% maior do que a população em idade de ocupá-las e, apesar disto, só metade destes jovens estarão estudando. Os dados também ajudam a derrubar um velho mito: o de que jovens abandonam o ensino médio, em geral, para trabalhar. "Somente 30% dos alunos que estudam no ensino médio trabalham mais de seis horas", disse Boclin, que defende um ensino com foco na formação do cidadão. "Hoje, quem sai do ensino médio não sabe nada sobre legislação previdenciária e trabalhista. E ele vai trabalhar", salientou o educador.

 

FOLHA DIRIGIDA — No Estado do Rio de Janeiro, assim como no Brasil, os alunos que participaram do Saeb tiveram resultado muito aquém do desejável, principalmente no ensino médio. Qual a razão para isto?

Roberto Boclin — O principal problema do ensino médio é a falta de atração que ele exerce. Hoje em dia, ele não tem uma finalidade. Antigamente, o ensino médio era preparatório para o ensino superior. Mas com o crescimento na oferta de vagas nas universidades e faculdades, o vestibular deixou de ser uma questão essencial. Há mais vagas do que candidatos, se considerarmos o sistema como um todo. Como não houve expansão da oferta de vagas nas instituições públicas de ensino superior, o vestibular para elas ainda é muito concorrido. Mas há inúmeras outras universidades, faculdades e centros universitários nos quais sobram vagas. Além disso, programas como o ProUni têm facilitado o acesso. A meu ver, o ensino médio possui uma grande deficiência, que é a de não formar o cidadão. Por isso, é essencial promover uma grande mudança na proposta pedagógica.

 

Que mudança deveria acontecer?

Em primeiro lugar, é preciso preparar os alunos para esta sociedade em permanente mutação. O ensino médio deveria contemplar o conhecimento de pelo menos dois idiomas. Além disso, os estudantes deveriam conhecer o texto de autores consagrados da Filosofia, da Ciência, da Cultura. Não seria necessário que estudassem Filosofia, mas que conhecessem o pensamento dos grandes filósofos contemporâneos. Precisariam também ser capazes de escrever uma boa redação técnica, conhecer obrigatoriamente os programas básicos de informática como word, excel, powerpoint, entre outros. Seria fundamental que conhecessem a Matemática até o nível da análise matemática, para o desenvolvimento do raciocínio lógico. Hoje, quem sai do ensino médio não sabe nada sobre legislação previdenciária e trabalhista. E ele vai trabalhar.

 

Além destes, há outros tipos de conhecimentos que seriam importantes e que, hoje, são pouco explorados nos currículos das escolas?

Também acho que o estudante, ao longo do ensino médio, deveria aprender fundamentos básicos de economia, do funcionamento do sistema financeiro, dos bancos, das companhias seguradoras. Precisaria conhecer também a política. Se perguntarmos a muitos jovens quem é o presidente da Câmara de Vereadores do Rio, ou da Alerj, a maioria provavelmente não sabe. E não sabem também qual é a função dos vereadores e deputados. Seria fundamental o aluno do ensino médio conhecer o funcionamento do sistema eleitoral brasileiro e até o de outros países, como os Estados Unidos, para ter uma visão crítica do assunto. Precisariam também assimilar princípios relacionados à Saúde Pública e ao Meio Ambiente.

 

Em que o conhecimento de temas como estes contribuiria para melhorar o currículo do ensino médio?

Estou elencando estes vários temas que deveriam fazer parte de uma proposta pedagógica de formar um cidadão. Não estou pensando para onde ele vai. Formado como um cidadão, poderá participar da sociedade. Paralelamente, ele poderia optar por um curso técnico que seja terminal e o leve a uma profissão ou poderia ir trabalhar, pois com estes conhecimentos, teria condições de conseguir se posicionar no mercado. Até porque um aspecto importante que também deveria ser estimulado é o empreendedorismo. O ensino médio a que me refiro corresponderia a uma grande reforma não só de proposta pedagógica, mas de mentalidade. Seria preciso introduzir um programa de aperfeiçoamento do corpo docente para torná-lo habilitado a trabalhar em sala com questões como estas.

 

O senhor enumerou uma série de conhecimentos que considera importantes para os alunos do ensino médio. No lugar de que tipo de conteúdos deveriam entrar? Seria o caso de se retirar alguma matéria do currículo?

Na verdade, a Pedagogia moderna fala na teoria das competências e principalmente na transversalidade de alguns tipos de conhecimentos. A maioria destes pontos que mencionei não pertence a uma disciplina. Fazem parte desta proposta mais moderna de formação de competências, em que o indivíduo é habilitado ao exercício de uma série de atividades. Por exemplo: a formação de um jornalista passa fundamentalmente por esta transversalidade de conhecimentos. É preciso que o profissional saiba sobre Meio Ambiente, Turismo, Economia, Política, Saúde, Saneamento Básico, entre outros temas. Então, esta formação não pode ser organizada em disciplinas, de forma fixa. Tem que ser fruto de seminários, palestras, debates, discussões. É uma formação dinâmica. E esta base de conhecimentos, fundamental para qualquer carreira, deve ser construída ao longo do ensino médio, que, infelizmente, é completamente vazio, sem atração e sem interesse para os jovens.

 

É por isso que há tanta evasão no ensino médio?

Sem dúvida. O crescimento da Educação de Jovens e Adultos tem sido enorme. Nos últimos seis anos, o número de alunos neste segmento cresceu 220% em Minas Gerais e 164% no estado do Rio de Janeiro. Este é um crescimento indesejável pois, na verdade, refere-se a alunos que estão atrasados nos estudos. Entre os que estão no 3º ano do ensino médio, 39% dos que estudam de dia e 24% dos que freqüentam a escola à noite fazem parte da fatia da população com mais renda. Apenas 46% dos alunos do 3º ano não têm atraso escolar. E, entre aqueles que têm 17 anos, 28% ingressaram na 3ª série do ensino médio em qualquer escola. Ou seja: só 28% dos que deveriam estar nesta série efetivamente estão. O dado é muito dramático. As previsões dos pesquisadores indicam que em 2010 a taxa bruta de escolarização será de 126% e a taxa líquida de 55%. Considerando-se que a taxa bruta é a capacidade total de oferta de vagas para uma determinada faixa etária e que a taxa líquida corresponde ao percentual dos que efetivamente frequentarão a escola, isto significa que, em 2010, teremos um grande atraso escolar no ensino médio. No atual ritmo, a oferta de vagas será maior do que a população em idade para ocupá-las e, mesmo assim, pouco mais da metade deverá estar efetivamente estudando.

 

Por que isto acontece? É por que os jovens preferem trabalhar a estudar?

Veja bem. Somente 30% dos alunos que estudam no ensino médio trabalham mais de seis horas. Do restante: 49% não trabalham e há um grupo de 21% de jovens que realizam atividades esporádicas e isoladas. Então, me parece claro que a questão, em muitos casos, não é a necessidade de trabalhar. Ele poderia estudar e trabalhar à noite. Inclusive, defendo que haja uma redução grande do ensino médio noturno. Muitos alunos que estudam à noite não trabalham e vão para a escola neste horário para ficarem o dia inteiro em casa, sem terem o que fazer. Ensino médio à noite deveria ser apenas para Educação de Jovens e Adultos. Ensino médio regular à noite tem de acabar.

 

O que seria fundamental para reverter o quadro atual, que o senhor considera preocupante?

Em primeiro lugar, melhorar a qualificação dos professores. A função docente não evoluiu nada da LDB para cá. Baixos salários, recursos escassos, pouco investimento, falta de respeito e de valorização em relação ao professor são apenas alguns dos problemas. E há um fato ainda mais grave: o baixo prestígio da função docente faz com que candidatos aos cursos de formação de professores tenham origem socioeconômica e capital cultural muito precários. Para modificar este perfil do docente, a médio e curto prazo, seria necessário fazer uma reforma completa em salários, competências e condições de trabalho. Hoje, a elite não procura mais o magistério. Não quero dizer que temos de elitizar o acesso a cursos de formação de docentes. Mas é preciso melhorar este capital cultural do professor, pois uma das causas da queda da qualidade é que não se consegue recrutar quadros de boa base.

 

Como mudar isto do ponto de vista dos que querem ser e dos que já são professores?

Primeiramente é preciso que a proficiência do ensino médio seja coerente com as demandas de coesão social, ou, em outras palavras, que o ensino médio tenha uma finalidade social. Não se trata só da finalidade de formar técnicos e sim de formar cidadãos. Em segundo lugar, quando houver a terminalidade do ensino médio, por meio da educação profissional, que ela esteja adequada às demandas da sociedade. Não adianta formar o profissional em uma atividade em que não exista mercado para ele trabalhar. Então, isto acaba entrando neste ciclo de desinteresse. É preciso também avaliar as escolas, com indicadores de desempenho dos alunos, da qualidade do trabalho dos docentes e, em função destas avaliações, promover as reformas necessárias para que o ensino seja de qualidade. No caso da educação pública federal e, principalmente, estadual, que concentra a oferta de ensino médio, é necessária uma gestão moderna, com uma logística desenvolvida e que tenha metas a serem seguidas.

 

O ensino médio de Jovens e Adultos também deveria ser revisto?

Como disse, a Educação de Jovens e Adultos teve crescimento muito grande nos últimos anos. Mas está desvalorizada. Ela é considerada um cursinho de segunda categoria. E a EJA não pode ser desvalorizada neste sentido. É preciso que esta formação tenha o mesmo rigor do ensino regular. Por outro lado, é preciso fazer um esforço também para que a EJA diminua e para que a taxa de escolarização líquida seja cada vez seja maior. Também defendo que a EJA deveria ser essencialmente profissionalizante. Além de dar esta formação mais geral, deveria ser direcionada para as necessidades mais imediatas do aluno no mercado de trabalho. A formação tem de propiciar ao aluno não só um diploma, mas um benefício concreto. Tem de permitir que ele melhore seu desempenho, tenha uma formação mais aberta. A impressão que tenho é que a maioria busca este tipo de curso pela necessidade mais imediata de um diploma. E aprende pouco.

 

A seu ver, o foco do ensino médio deveria ser mais profissionalizante?

As oportunidades para a educação profissional deveriam ser abertas a partir do ensino médio completo. Assim, há tempo para se fazer a formação básica do jovem e para ele escolher a formação técnica que irá seguir. Em nosso país, ainda se dá muito valor ao diploma do ensino superior. Mas um jovem bem formado na área do ensino médio que fizer um curso técnico de qualidade terá uma carreira tão boa quanto a de quem faz curso de nível superior, que, em muitos casos, nem consegue emprego.

 

Como o senhor avalia, em linhas gerais, a qualidade dos cursos técnicos no estado do Rio?

Algumas escolas têm cursos técnicos bons. E hoje há uma grande demanda por cursos técnicos e de tecnólogo. Há uma carência destas pessoas que tenham um conhecimento da tecnologia, da criatividade, da inovação. Um problema que existe é a concentração dos cursos em algumas áreas. O ensino técnico não deve ser direcionado só para as áreas tradicionais como Gestão e Saúde, principalmente. O Estado do Rio de Janeiro tem uma demanda enorme nas áreas de Turismo, Transportes, Saneamento, Meio Ambiente, entre outras. Somente nestes próximos dez anos, só dois projetos, um em Itaguaí e outro em Itaboraí, vão demandar cerca de 30 mil profissionais com nível técnico, em vários segmentos.

 

Naturalmente, seria ótimo se a expansão do ensino superior e da educação profissional no estado ocorressem paralelamente e no mesmo ritmo. Porém, caso seja necessário priorizar um destes objetivos, qual o senhor considera mais importante?

Sem dúvida a educação profissional de qualidade. Por várias razões: primeiro pela grande demanda das classes produtoras por profissionais competentes. E segundo pela necessidade imediata de dar respostas à grande parcela da população que está longe do mercado. Pode ser que eu esteja errado, mas não é o diploma de ensino superior que vai resolver a falta de emprego. Se observarmos os países desenvolvidos, veremos que a mão-de-obra de nível técnico é prioritária. Na Europa e nos Estados Unidos isto já ocorre. É importante formar profissionais de nível superior, mas a prioridade deve ser o estímulo à educação profissional.