A revelação do Enem

As dicas dos especialistas na reta final do exame, que só são possíveis por causa da fraude

Joice Tavares

Revista IstoÉ, Edição 2087

 

Em março, quando foi anunciado que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) seria reformulado e poderia ser utilizado como processo seletivo único para todas as universidades federais brasileiras, a curiosidade geral girava em torno de como seria a nova prova. Por vários meses, professores de cursinhos e do ensino médio tentaram preparar os alunos para o novo formato do teste, que agora mistura raciocínio e conteúdo em 180 questões. Antes, era focado em questões lógicas. O mistério acabou antes dos dias 3 e 4 de outubro, datas marcadas para o exame, quando foi noticiado o vazamento da prova e seu cancelamento. O episódio deu um prejuízo de mais de R$ 130 milhões ao governo, que teve de refazer, reimprimir e redistribuir a prova. Ela foi remarcada para os dias 5 e 6 de dezembro. E também causou transtornos para os 4,1 milhões de estudantes inscritos - por falta de prazo, a Universidade de São Paulo (USP) e a Unicamp, por exemplo, não vão mais utilizá-lo no processo seletivo. Se houve um lado bom, foi o fato de os estudantes e as escolas conhecerem o exame real antes de ele ser aplicado, certificando-se assim de que o caminho do aprendizado era o adequado, e ganharem algumas semanas a mais para a preparação.

 

Nesta reta final, deve-se manter o ritmo de estudos que vinha sendo seguido desde o início. Passar noites em claro em cima dos livros só atrapalha, ao passo que dedicar algumas horas para o lazer relaxa a mente e organiza os conhecimentos. Mas fazer simulados, sobretudo a prova do Enem que foi cancelada, é essencial. Esse tipo de exercício funciona como um treinamento, pois ajuda na familiarização com o formato e o conteúdo, auxilia a desenvolver a rapidez para resolver as questões, possibilita maior adaptação ao tempo disponível para concluir a prova e ainda identifica o que precisa ser mais bem trabalhado. É um bom momento também para rever os fatos marcantes de 2009, além de continuar acompanhando os fatos. Assuntos que ocuparam boa parte do noticiário este ano, como a gripe suína, acidentes aéreos e os conflitos no Irã, Coreia do Norte e Afeganistão, têm boa chance de ser cobrados. Também é preciso saber relacionar acontecimentos recentes com o passado, como a crise econômica mundial deflagrada em setembro do ano passado e a de 1929. Mas a maior revelação ocorrida graças ao vazamento da prova é ver, realmente, como o conteúdo transmitido em sala de aula é cobrado. "Ficou comprovado que a qualidade da educação é   avaliada, e isso é muito válido", diz Adilson Garcia, um dos diretores do colégio Vértice, o primeiro colocado no ranking do Enem na capital paulista. À frente de uma instituição que trabalha, há tempos, com metodologia baseada na interdisciplinaridade, Garcia sabe da importância da prova para checar como os conteúdos estão sendo passados na escola. Para ele, é importante que os alunos sejam incentivados a desenvolver novas habilidades e posicionamentos diante do conhecimento que adquirem em sua formação. Afinal, hoje, até mesmo por estarem cercados por todo tipo de informação, é importante que os jovens desenvolvam a capacidade de raciocinar, compreender, relacionar conteúdos, argumentar e propor soluções para diferentes situações. Por isso mesmo, os educadores são cobrados a não se limitar ao conteúdo das apostilas e a incentivar um diálogo maior em classe. É assim que os estudantes recebem o impulso necessário para ter um posicionamento mais crítico diante do mundo e do volume de informações que recebem. Isso deixa claro que eles não estão sendo preparados unicamente para os vestibulares.

 

Dessa forma, esses jovens passam a ter consciência de que aquilo que aprendem no ensino médio pode e deve ser aplicado em seu dia a dia. E o positivo é que essa percepção começa a partir deles mesmos. "O colégio passou a estimular o nosso espírito crítico. Sinto que aprendemos a questionar o que está sendo exposto. Sabemos lidar melhor com a interdisciplinaridade e relacionamos o que aprendemos em sala de aula com o que acontece em nossas vidas", comenta Marcella Massarotto, aluna do cursinho Anglo e que tenta uma vaga em direito. "Nós interligamos conhecimentos. É importante que sejamos estimulados a pensar dessa forma porque seremos cada vez mais cobrados", diz Isabella Albuquerque Salgado, aluna do colégio Objetivo que se prepara para entrar na faculdade de medicina. Mesmo quem foi prejudicado pela mudança nas datas do Enem ou não utilizará o exame como processo de seleção acha importante fazer a prova, que não é obrigatória. Julia Franco Tonissi e Gustavo Rangel Modena, ambos alunos do Vértice e concorrentes a uma vaga em administração, estão nesta situação. "Abri mão do vestibular da Universidade Federal de São Carlos, mas não desisti de fazer o Enem", diz Julia. "Acho importante fazer a prova para conhecer o formato e porque, nessa fase,   tudo funciona como um treino a mais." Gustavo também vê vantagens no teste, embora não vá contar ponto para nenhum vestibular ao qual concorre. "Mas, se o encaro com seriedade, ele vale como um preparo maior para outras provas", completa ele.

 

Apesar de estar sendo recebido de uma maneira positiva, o novo Enem ainda desperta dúvidas. "Ele cumpre um papel importante de avaliar o ensino médio e mostrar aos educadores a importância de se passar princípios como contextualidade e interdisciplinaridade", diz Nicolau Marmo, coordenador-geral do Sistema Anglo de Ensino. "Mas seu conteúdo não lhe permite ser usado com uma finalidade igual à do vestibular." Assim como ele, muitos profissionais da área educacional acreditam que o nível de conhecimento cobrado pela prova - mesmo sendo mais abrangente agora - ainda é insuficiente para cumprir um papel tão importante como o de selecionar candidatos para a universidade. "O Enem pode chegar a substituir os vestibulares, mas sinto que ainda estamos engatinhando nessa direção. É preciso muito envolvimento e dedicação com esse novo projeto para que ele realmente venha a ter essa função", diz Vera Lúcia da Costa Antunes, coordenadora do colégio Objetivo. Para solucionar esse problema, algumas universidades continuaram a apostar no Enem como parte de seus vestibulares, mas optaram por refinar a seleção dos alunos com uma segunda prova. Foi a atitude tomada pela Universidade Federal Paulista (Unifesp), que usará o exame misto em 30% de seus cursos - os outros 70% terão apenas o Enem como seleção dos candidatos. "Se fizéssemos essa opção no modelo antigo do exame, correríamos o risco de selecionar estudantes sem o conhecimento básico para determinadas áreas. Mas o novo formato possibilita um conhecimento geral maior", explica Lucia Sampaio, assessora da Unifesp para assuntos de vestibular. Ela acredita que o Enem tem chances de substituir os vestibulares nacionais, mas não considera isso obrigatório. "Em um país como o Brasil, com tantas realidades diferentes, talvez nem seja interessante que todos os estudantes façam uma mesma prova. A variedade é importante nesse caso", acredita. De qualquer maneira, o novo Enem é válido por trazer uma nova postura para dentro da sala de aula. Já não vale mais a ideia de se preparar unicamente para realizar uma prova. Hoje, para chegar à universidade, o estudante precisa se preparar para a vida.