11 bilhões de reais em
jogo
29.05.2008
Por Roberta Paduan
A discussão em torno do bilionário
Sistema S tem o mérito de jogar luzes sobre o crônico problema da falta de
qualificação da mão-de-obra brasileira
EXAME Um assunto gerou
discussões acaloradas nas últimas semanas entre entidades empresariais, de um
lado, e governo e especialistas em educação, de outro. O pivô da contenda é a
reforma do chamado Sistema S, conjunto de nove instituições voltadas para o
ensino profissionalizante e para a promoção de cultura e lazer a trabalhadores
dos mais diversos setores. Entre as mais conhecidas estão o Senai e o Sesi,
ligadas à indústria — e as primeiras criadas pela lei que instituiu o Sistema,
em 1942. O complexo todo inclui hoje 1 200 escolas, somente nas áreas da
indústria e do comércio, e movimenta um orçamento anual de 11 bilhões de reais,
de acordo com o Tribunal de Contas da União. É exatamente o que fazer com esse
dinheiro — fruto de uma contribuição obrigatória de 2,5% sobre a folha de
pagamentos das empresas — que está no centro do debate. O pano de fundo da
discussão é composto de crescimento econômico acelerado, acompanhado por uma
crônica falta de mão-de-obra qualificada em quase todos os setores e níveis —
uma debilidade que, por sinal, tem origem no péssimo nível do Ensino
Fundamental público brasileiro. “O Sistema pode formar mais técnicos”, diz o
ministro da Educação, Fernando Haddad, defensor de um projeto que redireciona
os recursos arrecadados pelo Sistema S. Para dirigentes de entidades empresariais
que participam da administração do Sistema, a proposta do governo tem como
objetivo final transferir a “chave” desse imenso cofre para as mãos do Estado.
“Esse projeto é estatizante, burocratizante e intervencionista”, afirma Armando
Monteiro Neto, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), um dos
mais inflamados opositores às mudanças. Mais do que apontar qual dos dois lados
está com a razão, o debate tem o mérito de jogar luzes sobre a falta de
educação e qualificação do trabalhador brasileiro e o perigo que isso
representa para a sustentação do crescimento da economia e das empresas. Tem o
mérito também de colocar em discussão a eficiência de um sistema que foi
concebido há quase sete décadas, num Brasil e num mundo que mudaram radicalmente
desde então.
Com a palavra, os
financiadores e supostos beneficiários do Sistema S, as empresas brasileiras.
EXAME realizou uma pesquisa exclusiva com 278 empresas, entre grandes, médias e
pequenas, e a principal conclusão foi que elas — sem distinção de porte — não
estão satisfeitas. Sete de cada dez companhias consultadas se manifestaram
contrárias ao pilar do Sistema S: a obrigatoriedade da contribuição. E 80%
delas declararam que prefeririam usar o dinheiro para treinar por conta própria
os funcionários. Outro aspecto sensível é a gestão: apenas 19% das empresas que
responderam à pesquisa consideram a administração transparente e 52 % se
disseram sem condições de avaliá-la.
Além de um orçamento
bilionário, está em jogo a principal rede de ensino profissionalizante do país,
num momento em que a carência de mão-de-obra qualificada se apresenta como um
dos gargalos que podem travar o crescimento da economia. O Brasil forma por ano
200 000 técnicos de nível médio em várias especialidades. Mas um recente estudo
da CNI alerta para a necessidade de o país formar, além desses, mais 400 000
técnicos até 2010. “É uma boa hora para discutir se estamos usando essa
montanha de dinheiro da melhor maneira possível”, afirma o economista Cláudio
Haddad, presidente da escola de negócios Ibmec São Paulo. “O setor privado
deveria dar o exemplo e se mostrar mais transparente com as contas do
Sistema.”
Retorno
questionado |
|
Uma pesquisa
exclusiva realizada por EXAME com 278 empresas, entre grandes, médias e
pequenas, revela insatisfação com o Sistema S |
|
Obrigatoriedade
da contribuição(1) |
|
71% são contrários à obrigatoriedade |
|
Como o
dinheiro é empregado |
|
53% responderam que os recursos não
são bem empregados |
|
Utilização
dos serviços |
|
75% das empresas ouvidas já
contrataram cursos de formação profissional ou consultoria do Sistema |
|
Os preços
dos serviços são justos? |
|
Consideram os preços
justos |
54% |
Consideram os
serviços caros |
42% |
Consideram baixos |
4% |
Os cursos
são adequados? |
|
A oferta é
parcialmente adequada |
54% |
Os cursos são
adequados |
30,5% |
São inadequados |
15,5% |
Contratação
de formados nos cursos |
|
Raramente contratam |
48% |
Contratam com
freqüência |
30% |
Nunca contratam |
22% |
Quais devem
ser as prioridades |
|
Promover tanto
formação profissional quanto lazer e cultura |
60,5% |
A prioridade deve
ser a formação profissional |
38% |
A dedicação deveria
ser somente ao lazer |
1,5% |
Como avaliam
a administração das entidades |
|
Não sabem avaliar |
52% |
A gestão não é transparente |
29% |
A gestão é
transparente |
19 % |
(1) As empresas
recolhem, por lei, 2,5% sobre a folha de pagamentos para manter o Sistema S |
A pesquisa realizada
por EXAME identificou também que 54% das empresas consideram que o cardápio de
cursos oferecidos pelas escolas do tipo S é apenas parcialmente adequado às
necessidades. Outros 15,5% disseram não encontrar nenhuma modalidade de
formação que lhes seja útil nas escolas profissionalizantes. Exemplo disso é a
catarinense Datasul, especializada em softwares de gestão empresarial, que
contribui anualmente com 800 000 reais para o Senac e o Sesc, as entidades
ligadas ao comércio e a serviços. “Infelizmente, esse é um dinheiro que não nos
dá retorno, pois a entidade não oferece nenhum curso que atenda ao que precisamos
em termos de formação de profissionais”, afirma Giovanni Coradin, diretor de
recursos humanos da Datasul. Ao que tudo indica, o Sistema S não enxergou a
carência de mão-de-obra que o país enfrenta no setor de tecnologia da
informação. Estima-se que o Brasil tenha déficit de 50 000 programadores e
analistas de sistemas. “Esses profissionais estão na base da sociedade do
conhecimento e devem ser vistos como prioridade, assim como era formar técnicos
em mecânica nas décadas de 60 e
É verdade que essa não
é a mesma realidade para todos os setores produtivos. Ao longo de quase 70 anos
de existência, várias entidades do Sistema S construíram uma imagem atrelada à
qualidade. Não é exagero afirmar que o Senai — braço de ensino
profissionalizante do Sistema atrelado à indústria — foi um dos esteios da
forte industrialização do país após a década de 60. Até hoje, a rede de ensino
é considerada fornecedora fundamental de pessoal especializado na indústria
automobilística. “Trata-se de uma das poucas fontes de formação de mão-de-obra
técnica para nosso setor”, afirma um executivo de uma montadora que
preferiu não se identificar. É por esse motivo que boa parte do empresariado se
arrepia quando ouve falar sobre reforma no Sistema S. “Há um medo generalizado
de que os recursos que sustentam as escolas passem para as mãos do governo, por
isso a maioria se contenta com a máxima ‘ruim com ele, pior sem ele’ ”, diz o
executivo.
O que pode
mudar no Sistema S |
Entre as alterações
propostas pelo governo na rede de escolas e de serviço social, a principal é
a maior ênfase no ensino profissionalizante |
O que muda |
Prioridade
para o ensino |
A destinação
do dinheiro |
A divisão do
bolo |
Duração dos
cursos |
Exigências
para os alunos |
O que não
muda |
Quem cuida
do dinheiro |
A gestão das
entidades |
Quem define
os cursos |
O principal temor das
federações empresariais é que o governo esteja, na verdade, querendo assumir a
gestão dos recursos que mantêm o Sistema. O governo refuta a acusação. O
ministro da Educação, Fernando Haddad, foi categórico em entrevista a EXAME:
“Não propusemos e não temos a pretensão de controlar um único centavo do
Sistema”. Além de nada mudar na gestão do dinheiro, a decisão sobre o tipo de
curso que deve ser dado e onde deve ser ministrado também continuará nas mãos
das entidades, que, segundo ele, sabem melhor do que o governo as demandas das
empresas. “Não será criada nenhuma nova conta corrente, nenhum novo conselho”,
afirma Haddad.
Uma mudança fundamental
proposta pelo governo é a revisão dos percentuais de distribuição da
arrecadação entre o setor de ensino e o de serviço social do Sistema S.
Atualmente, 40% dos recursos são destinados às entidades de ensino
profissionalizante, enquanto 60% vão para os centros de cultura e lazer, entre
eles o Sesc, reconhecido como importante circuito de espetáculos culturais e
por instalações esportivas e de lazer de primeira linha. O governo propõe que
se inverta a proporção: os recursos passariam a financiar majoritariamente a
educação. Dias atrás, o Ministério da Educação aceitou estudar a contraproposta
das entidades de serviço social, que pleiteiam manter a divisão atual de
recursos ou, no máximo, dividi-los pela metade.
Outro ponto da reforma
é estabelecer como princípio que os recursos arrecadados compulsoriamente
sirvam para custear apenas cursos gratuitos. Hoje, as escolas do Sistema
oferecem cursos gratuitos e pagos sem distinção do recurso que os custeia. Os
cursos gratuitos passariam a ser todos de nível técnico e a ter pelo menos 200
horas de duração. Segundo Haddad, os cursos de rápida duração, geralmente
feitos sob medida para uma empresa — para operar uma máquina, por exemplo —,
são necessários e de grande valia para o setor produtivo, mas servem apenas
para uma capacitação imediata do trabalhador, não para formá-lo numa profissão.
“As escolas do Sistema S podem e devem continuar oferecendo cursos de curta
duração, porém eles terão de ser pagos pelas empresas ou pelos próprios
alunos”, diz Haddad. Pelas contas do ministério, com essas mudanças é possível
formar anualmente 800 000 técnicos em cursos de 800 horas ou 3,2 milhões em
cursos de 200 horas com os recursos que seguem apenas para as redes
profissionalizantes do Sistema. Atualmente, a média de duração dos cursos do
Senai é de 84 horas. No ano passado, a rede, cujo orçamento foi de 1,4 bilhão
de reais, formou 100 000 técnicos e aprendizes gratuitamente.
Não há como negar que,
ao longo de quase sete décadas, as entidades do Sistema S sofreram um
desvirtuamento. Metade dos cursos do Senai atualmente é paga pela empresa ou
pelo estudante — isto é, paga-se além da contribuição compulsória. Numa
pesquisa nos sites do Senac, não é possível encontrar nenhum curso gratuito. A
justificativa, segundo a direção nacional da entidade, é que a cobrança ajuda a
subsidiar a formação de um número maior de profissionais. Para Fernando Leme,
presidente da Associação Nacional de Educação Tecnológica, que representa as
escolas técnicas privadas, a explicação é outra. “Eles vivem no melhor dos
mundos, pois recebem dinheiro faça chuva ou faça sol e, portanto, não têm de se
esforçar em operar da maneira mais competitiva possível”, afirma Leme.
“Certamente é possível fazer mais com o mesmo.”
Fonte:
http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0919/economia/m0160372.html